Fragmentos de uma tese que ainda dança

Daniela Minello

Fragmentos de uma tese que ainda dança

Todos os dias a mesma rotina: abria as janelas e trancava as portas da sala, colocava a meia calça e o collant preto, estendia os aventais no chão e montava a arara de ferro; abria as janelas e deixava que o vento balançasse as cortinas. Preparava a câmera filmadora e fotográfica centralizada na sala, abria meu caderno e pegava uma caneta onde iniciava escrevendo a data e as palavras que me motivavam estar ali: pensamento/movimento, explorar, selecionar e montar. Palavras que ganharam potência após o encontro com o Professor que fazia parte do comitê de orientação ao questionar-me sobre o que me motivava escrever e dançar a tese. A rotina de capturar as imagens com a câmera fotográfica e que também filmava, servia para que posteriormente aos dias de criação eu pudesse parar e perceber como meu corpo estava se deslocando pelos espaços que fui percorrendo.

Através deste olhar de observação fui compondo estes momentos de criação em que fui selecionando e montando conforme ia percebendo que minhas inquietações de um corpo dançante iam sendo potencializadas com outras inquietações mais potentes de um corpo dançante acompanhado por seus ruídos internos e externos. A opção em fazer estes registros veio a partir da imagem que move e impulsiona esta tese que é a fotografia da minha primeira apresentação de balé clássico aos doze anos de idade. Os 38 procedimentos adotados na metodologia do processo de criação foram surgindo a cada encontro que me propus a estar na sala de ensaio prestando atenção no que meu corpo estava querendo fazer. Toda vez que entrava na sala parava e tentava prestar atenção no silêncio da sala e na minha respiração através de um aquecimento das articulações do meu corpo ao ficar deitada no chão e em deslocamento pelo espaço.

Assim, ia a partir de um alongamento que iniciava no chão e ganhava outros espaços da sala, deslocando-me no ritmo da minha respiração e dos sons que iam surgindo vindos de fora da sala. Como havia selecionado alguns elementos que marcaram meus encontros com a dança desde a minha infância, que era os aventais, as barras de ferro das aulas e a imagem da minha primeira apresentação, fui aos poucos trazendo eles para a sala e tentava buscar em minhas lembranças estes momentos que de alguma forma ficaram em minhas lembranças e assim, fui aos poucos compondo estes movimentos que era um somatório de lembranças passadas com o encontro de um corpo que agora tinha outra forma e outras experiências. Ficava por um tempo apenas pensando. Às vezes, esse tempo era horas, isso me angustiava. Meu estado de tensão era enorme, esperava que algo acontecesse. Às vezes, não acontecia. O tempo estava passando e eu precisava produzir. Quando sentia que algo em meu pensamento me estimulava a levantar, iniciava uma caminhada solta que aos poucos era tomada por movimentos diversificados. Mesmo que tentasse deixar meu corpo livre, percebia que a técnica do balé clássico predominava em mim na forma de expressão.

No início foi estranho, mas depois aliei-me a ela e ao que havia tido contato durante a graduação em Artes Cênicas e com os diversos cursos de aperfeiçoamento que havia feito e permiti que os movimentos fluíssem e acontecessem. A sensação que tinha era de que tudo vinha ao mesmo tempo em meu pensamento: as experiências com a dança, com o teatro, com o circo e tantas outras que ali estavam acessíveis em meu pensamento. Quando executamos qualquer movimento cotidiano, e “as técnicas corporais envolvem o uso do corpo” – não apenas a dança utiliza-se destas técnicas –, passamos a perceber que a técnica nos acompanha em tudo aquilo que sistematizamos e que pretendemos repetir com primor e que podemos nos aliar a ela aproveitando o que nos convém. “As técnicas corporais não estão apenas a serviço da dança e da performance corporal, e sim, acima de tudo, do homem” (VALLE, 2009, p.42-43). Assim, ainda conforme a autora, pode-se dizer que a técnica na dança pode tanto nos libertar como nos aprisionar. A técnica de dança pode ser tanto libertadora como aprisionadora. É libertadora porque aprendemos como usar o corpo de forma eficiente, com gasto certo de energia. (…)

Por outro lado, ao treinar o corpo em técnicas específicas em dança, o docilizamos. O corpo dócil já foi objeto de estudos detalhados desde o século XVIII. Não é novidade que em qualquer sociedade o corpo está preso no interior de poderes, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações. (VALLE, 2009, p.43) 41 O que eu penso quanto ao libertar ou aprisionar referindose a técnica na dança? No caso desta pesquisa, sinto que a técnica tanto do balé clássico como de outros experimentos, foi dialogando com o processo de criação que estava aberto para uma escuta de um corpo que agora no tempo presente está marcado por outras técnicas que são adquiridas por um corpo que no cotidiano não faz mais o mesmo número de aulas de quando era mais jovem, um corpo que se move com outro formato pelo qual mo-‘via’- se antes mas, que ainda acredita na sua potência de criação em meio as limitações da idade e da não aula diária com as mais variadas técnicas de dança e das artes da cena. Hoje este corpo mo-‘vê’-se mais consciente de tudo o que dialoga consigo a sua volta. Acredito que a criação é o cerne da dança e passa pelo esvaziamento da mente para abrir espaços para pensar o novo.

Quando nos permitimos ao experimento também estamos criando possibilidades de dançar a nossa escuta. Mesmo que estejamos muitas vezes dialogando com nossas resistências como pontua a autora Valle (2009): Penso assim, na criação como um despertar para o desafio das próprias preferências de movimento: um processo que não é fácil e que nunca se consegue fazer totalmente. Resistir às relações de saber/poder que residem em seu próprio corpo, mas que são subjetivadas por uma cultura, isto é, pelas redes sociais. Exercitar resistências ao poder sujeitante e subjetivante. Exercitar a liberdade que só existe quando se pode resistir. Não se trata de ser contrário a uma tradição de uma técnica, mas transformá-la, hibridizá-la em algo mais em relação a si mesmo: desafiar-se!

O que é resistência em mim talvez não seja resistência para o outro e vive-versa. A criação não quer normalizar, criando um critério rígido que dê conta do todo. A criação é um processo de resistência que se dá aos poucos e sempre abarcando referências externas e dos outros. É criar uma outra disciplina para o corpo, que desafie a sair da disciplina à qual se está submetida (VALLE, 2009, p.47). 42 Assim que experimentamos o novo, nosso corpo passa a estabelecer uma relação de proximidade com o movimento, assim que vamos repetindo e dando significados a eles. Nosso cérebro passa a criar mapas mentais de localização pelo espaço transformando estes movimentos como se já tivessem sido coreografados antes mesmo que percebêssemos.

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